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Andarilhos do Alvorecer. 10.

  • Foto do escritor: Giovanna Saggiomo
    Giovanna Saggiomo
  • 13 de out. de 2017
  • 4 min de leitura

Era tão pacífico e indolor.

Ao menos até uma luz forte quase cegar meus olhos, uma das poucas coisas que eu ainda sentia.

- ARGH!

Meu gemido de dor, que estava mais para grito, fez a pessoa que havia puxado minhas pálpebras pular para trás.

Era uma mulher de rosto fino e olhos verdes. Os cabelos, tão negros quanto a escuridão que me devorava por dentro dos olhos, eram lisos e cuidadosamente arrumados.

- Acordou... - ela comentou, se recuperando do susto e se aproximando outra vez. - Estava ficando preocupada, suas respostas aos meus estímulos estavam diminuindo.

- Eu estava dormindo. Ou morrendo talvez, não saberia dizer. Onde estou?

- Na enfermaria. - a resposta veio de Benji, sentado em silêncio do outro lado da sala.

A mulher de roupas brancas nos encarou por um segundo, depois se afastou.

- TJ...

- Ele está bem. Você matou todos antes de apagar...

- Matei? Isso é impossível.

- Mesmo? Foi o mesmo que disse sobre minha manipulação do ar, ainda assim... - ele moveu as mãos no ar e um vento forte, apesar do movimento de suas mãos ter sido gracioso, passou pela lateral do meu rosto, jogando meu cabelo para trás. - Estamos aqui.

- Parece estar perdendo o toque.

- Perdendo o toque? Eu estou perdendo a cabeça, Mia! - ele se levantou, num movimento tão rápido que todas as folhas de papel do quarto começaram a voar. - Como pôde fazer algo tão... Impulsivo?!? E se TJ houvesse chegado atrasado? E se ele chegasse depois de você ter se transformado? Você poderia tê-lo matado!

- Eu jamais faria isso.

- Claro que faria! Acha que aquelas coisas escolhem suas vítimas? Eles não escolhem! Eles não conseguem! Eles comem até aquilo que um dia amaram!

Eu baixei o rosto por um segundo. Algo no tom alterado da voz dele me soava familiar. Dolorosamente particular. Eu sabia o que estava acontecendo. Benji estava de volta ao dia que ele se tornara Benji.

- Desculpe trazer os seus traumas à tona.

Ele parou, as folhas de papel caíram no chão, flutuando graciosamente.

- Desculpe. Eu fui grosseiro.

- Está tudo bem. Eu fui primeiro. - eu sorri. - Todos cometemos erros.

- Eu sei, mas ainda assim, não foi certo. Eu deveria ter ficado mais ao seu lado. Eu falhei.

- No que? No seu treinamento de monge dos ventos?

Ele olhou para mim e depois se rendeu, sorrindo.

- Combina com você.

- O que? Meu sorriso irresistível?

Ele riu antes de responder.

- O fogo. - ele sorriu quando viu que eu não tinha uma resposta espertinha para aquilo. - Impulsiva, determinada, inabalável... Indomável.

"Indomável". Acho que gostava daquela palavra, embora não soubesse disso antes. Mas algo na forma como ele falou me fez sentir orgulho.

- O que houve? - me forcei sentada na cama improvisada da enfermaria. - Naquela noite, o que houve?

- Bem, é importante que você saiba antes, que a única testemunha ocular que temos é uma criança. - eu ri. - Nas palavras dele... - e Benji tentou imitar a voz de TJ. Sem sucesso. - Eu cheguei e ela tava quase sendo atacada por aquelas coisas! Então eu ataquei com todas as minhas pedras! Uma delas era quase do tamanho de uma melancia! E eu derrubei vários! Mas eles eram muitos e começaram a vir pra cima de mim! A Mia gritou pra mim e veio andando na minha direção! Eu disse que não precisava, que eu tava tranquilo! Mas ela continuou vindo! E aí de repente, fwooooosh! Saia fogo da mão dela que nem um dragão! Só que ainda melhor, pq dragões só tem uma boca e ela tem duas mãos e wooooow! Foi incrível! Todas aquelas coisas caíram!

Ele não havia conseguido imitar a voz de TJ, mas a imitação do seu jeito de falar estava muito boa e eu ri.

- Até que você não foi mal!

- Oh, obrigado, bom saber!

- E como ele me trouxe? Você ajudou?

- Sim. Ele conseguiu te arrastar para a floresta, por isso os arranhões nas costas. E aí voltou para me buscar.

- Como sabe que eu tenho arranhões nas costas? Não andou me vendo sem camisa, andou, Benji?

- Ah, você nunca vai saber. - ele respondeu num tom provocante, me fazendo rir. - A doutora me falou.

- E o que disseram aos demais?

- Bem, o que TJ viu, ele contou. Todos estão legitimamente preocupados com você, Mia.

Por um segundo desviei os olhos, não queria ter de explicar. Não queria reviver o momento em que eu havia despedaçado. Mas a verdade é que não saberia dizer se queria também ser a única à saber.

A gente é um bicho estranho. Não quer falar, mas quer. Não quer que os outros saibam, mas quer. Não quer a ajuda de ninguém. Mas quer.

Eu notei tarde demais que estava cansada de carregar o fardo sozinha e respirei fundo.

- Eu acho que está na hora de explicar à eles.

- Você não precisa se não quiser. - ele disse, notando minha hesitação.

- Eu sei, mas aquelas pessoas dividiram o passado delas comigo... Acho que é hora de dividir algo com elas também.

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