Andarilhos do Alvorecer. 8.
- Giovanna Saggiomo
- 8 de out. de 2017
- 4 min de leitura
Por alguns dias, me permiti apenas acompanhar os demais em seus afazeres. Observando se estavam mesmo todos bem e pareciam estar mais que bem, quase como se os mastigadores aos pés da montanha não existissem.
Era bom ver todos eles bem e tranquilos novamente, bem alimentados e se dando bem com o grupo... Mas a minha sensação de não-pertencer apenas crescia.
- Mia? - TJ estava sentado ao meu lado, ele tinha uma tigela de grãos nas mãos e se servia dela com um sorriso no rosto. - Você gosta do moço com cara de monge?
- Quê? Do que está falando, TJ?
- Desde que ele chegou, bastante coisa mudou na nossa vida, a vovó parece estar feliz também... Mas você anda meio... Aérea.
- Ah! - por um segundo estava preocupada com que tipo de fofocas a Sra. Smith e Ruth andavam espalhando, mas não parecia ser o caso dessa vez. - Desculpe, eu estou apenas feliz em ver que vocês estão se adaptando bem.
- Mas, Mia... Você não gosta daqui, não é? - eu olhei na direção dele, confusa. - Você não sorri mais como antes.
A conversa se encerrou quando TJ se afastou para se servir de mais uma tigela de grãos, mas eu havia ficado pensando sobre o que ele dissera.
Que tipo de sorriso eu tinha quando estávamos à beira da morte sozinhos no hotel na beira da estrada?
Me perguntei se por acaso no meu íntimo eu estava gostando daquele apocalipse. De tantas pessoas perdidas e tantas mais em risco...
Que tipo de monstro eu teria de ser para me sentir mais alegre lá.
Naquela tarde, saí com o arco e flecha para dar uma volta na floresta ao redor do templo. Disse que procuraria comida, mas a verdade é que estava me procurando acima de qualquer outra coisa.
Eu não sabia bem porque aquele lugar me era tão incômodo, ainda mais quando eu fora a pessoa responsável por nos mudarmos para lá, mas as palavras de TJ ainda não haviam deixado minha mente.
Porque eu era mais feliz quando nossas vidas estavam em risco? E isso era mesmo tão evidente? Claro, agora caminhando sozinha pela floresta ao redor do templo, eu saberia responder algumas partes dessas perguntas, mas a verdade é que não ousava fazer isso em voz alta, assustada que respondê-las em alto e bom tom tornasse-as ainda mais reais.
Foi quando ouvi um farfalhar de folhas atrás de mim, já me voltando com a flecha no arco para a fonte do barulho, que acordei dos meus devaneios. Não chamei pelo que quer que fosse, sem saber o que esperar, mas de fato não esperava o que saíra por entre as folhas.
Um pequeno coelho de pêlos acinzentados pulara para fora do arbusto e eu me vi baixar o arco por um instante.
- Hey, amiguinho, tempos difíceis, não? - eu puxei uma cenoura da pequena bolsa de suprimentos que carregava, esticando-a na direção do animal. - Não pode ficar aqui sozinho. Pode acabar sendo pego por uma daquelas coisas e se transformando também. - o animal agora havia se aproximado, comendo o que eu havia lhe oferecido. - Nós odiaríamos se isso acontecesse, né? Onde está sua família?
- Animais não podem se transformar.
Dei um pulo ao ouvir a voz de Benji vindo de trás de mim, de forma que não sei como o coelho não saiu correndo também.
- Você parece até assombração aparecendo do nada assim.
- Haha. - ele sorriu e se abaixou perto de mim e do animal. - Enfim, existem muitos animais aqui perto do templo.
- Você disse que eles não se tornam mastigadores.
- Não, mas ainda assim, são comidos por eles. O motivo pelo qual muitos animais vivem aqui ao redor é que nós sempre damos nosso melhor em manter as criaturas o mais longe possível da montanha.
- Como conseguem?
- Bom, nós temos "mágica" - e ele fez as aspas com os dedos no ar enquanto falava. - ao nosso lado.
- Benji... Para quê exatamente está me procurando?
Ele se sentou na terra e eu imaginei que aquele fosse um sinal de que a resposta viria dessa vez.
- Você me perguntou no que eu acreditava e eu lhe disse que acreditava que sobreviveríamos à tudo isso. - ele olhou para mim para ver se ainda tinha minha atenção e então continuou. - O que eu não disse, é que também acredito que teremos de lutar por isso. Não acho que um belo dia aquelas criaturas vão simplesmente desaparecer. Nem tão pouco acredito que são capazes de voltar ao normal, infelizmente. Mas justamente porque acredito que teremos de lutar para sobreviver à um inimigo que não vai simplesmente desistir, precisamos reunir o melhor dos nossos, para aumentar nossas chances de sobrevivência.
- Então você nos convidou porque quer que lutemos com vocês. Precisam de alguém que fique na linha de frente segurando os mastigadores para usar as suas magias.
- Não. Nós temos outras formas de segura-los sem sacrificar ninguém no processo. Convidei vocês porque acredito que têm algo que falta à muitos grupos. Esperança.
- Se tem uma coisa que eu não tenho, é esperança. - cruzei os braços, encarando-o nos olhos.
- Talvez não, mas é isso que você dá àquelas pessoas, queira você ver isso ou não. Eles precisam de você, Mia. E nós precisamos deles, o que quer dizer que invariavelmente, precisamos de você também.
Eu engoli em seco.
- Então, peço encarecidamente que considere a possibilidade de se unir à nossa causa com os seus. Pois se se importa com eles, eles estarão mais seguros se forem capazes de se defender.
Ele se retirou pouco tempo depois, me dando o espaço que eu havia ido procurar nas montanhas.
A ideia de que eu era um monstro mais feliz com a possibilidade da morte daquelas pessoas havia ficado em segundo plano em minha mente, conforme eu considerava o que Benji havia me dito.
Se era mesmo verdade que minha presença nos treinos aumentaria as chances de sobrevivência dos demais, era um preço pequeno à pagar... Ao menos, era isso que eu havia pensado.
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